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Transgênicos

Todo grande avanço científico, quando é bom, parece mágico num primeiro momento. Passado algum tempo, acaba sendo incorporado como prática rotineira, e ninguém consegue pensar como seria viver sem ele. Em meados do século XIX, a mortalidade entre as mulheres grávidas era altíssima, simplesmente porque os médicos mexiam em cadáveres e depois realizavam os partos – sem lavar as mãos. A assepsia com uma solução de cloreto de cal reduziu a mortalidade das parturientes a menos de um décimo do que era antes. Milagre! Mais ou menos na mesma época, surgiu a anestesia, dando às pessoas o direito de ser tratadas sem sentir dor. Uma bênção. Agora imagine a vida sem assepsia ou anestesia. No capítulo dos grandes avanços, as experiências genéticas envolvendo a fauna e a flora parecem ser aquilo em que mais perto a ciência chegou da alquimia. É mágica pura. Os pesquisadores criam animais e plantas com um pequeno porcentual de diferença em relação aos que existem na natureza – e, como se pode acompanhar pela repercussão dessas intervenções, a sociedade ainda observa os experimentos com espanto e preocupação. Registram-se manifestações contra as modificações genéticas nos Estados Unidos, na Europa, na Ásia e até na pobre África, onde os transgênicos poderiam em tese ajudar a combater a fome. Recentemente, a Zâmbia recusou um carregamento de milho transgênico doado pelos Estados Unidos.

Na semana passada, os transgênicos ocuparam espaço especial também no Brasil. Houve manifestação de ativistas do Greenpeace em supermercados, um governador de Estado inventou uma blitz caça-manchetes para identificar carregamentos transgênicos e Brasília se viu envolvida em mais uma rodada de discussões para ver se autoriza ou proíbe a produção de alimentos modificados geneticamente no país. Nos últimos sete anos, os transgênicos vêm sendo cultivados em mais de quinze países. O Brasil é um deles. Planta-se soja modificada no Rio Grande do Sul. A maior parte do mundo já tomou uma posição a respeito dos alimentos geneticamente modificados. França, Inglaterra e Alemanha autorizam experiências genéticas, mas proíbem o cultivo comercial. Canadá, China e Argentina usam os transgênicos livremente. São transgênicos um terço das plantações de soja e milho americanos e metade do algodão australiano. O Brasil vai na contramão e se mantém em impávido silêncio. Mesmo sendo o país o segundo maior produtor mundial de soja, o governo não diz se plantar transgênicos é legal ou ilegal. Cansados de esperar, os agricultores gaúchos decidiram cuidar da vida. Atravessaram a fronteira com a Argentina e voltaram de lá com sementes transgênicas. Resultado: calcula-se que 80% da soja plantada no Estado já seja geneticamente modificada. A realidade nacional ficou exótica. Os fazendeiros plantam e colhem a safra antes mesmo de haver legislação definitiva. Tornaram-se a versão rural dos sacoleiros, que contrariam as leis de forma descarada.

Beto Barata/AE

ISENÇÃO COMPROMETIDA

A ministra Marina Silva, do Meio Ambiente: uma de suas principais assessoras foi a coordenadora das campanhas contra alimentos modificados promovidas pelo Greenpeace

Na semana passada, o governo Lula encenou um espetáculo lamentável. Os ministros fizeram reuniões e, ao fim delas, ficou acertado que o governo vai mandar para o Congresso Nacional um projeto de lei cujo teor é de assustar. O registro de um produto transgênico só será concedido se passar por cinco instâncias governamentais – e for aprovado em todas. Trata-se de um pesadelo kafkiano. A proposta acabou assim para não melindrar a ministra Marina Silva, do Meio Ambiente, que até então não venceu uma única batalha. Pudera. Marina quer simplesmente banir os transgênicos do mapa e, para atingir esse objetivo, se cercou de aliados ecoxiitas no ministério. Uma de suas armas nessa guerra é Marijane Lisboa, secretária de Qualidade Ambiental nos Assentamentos Humanos, encarregada do governo de discutir a transgenia em Brasília. Marijane tem folha corrida na área. Trabalhou por mais de dez anos no Greenpeace, incumbida das campanhas contra os transgênicos. Que independência se deve esperar de alguém com esse currículo? A ministra Marina Silva (com a assessoria de Marijane) é voz isolada no combate aos transgênicos. Conta com o apoio apenas do ministro Miguel Rossetto, do Desenvolvimento Agrário, outro inimigo declarado desse e de outros avanços tecnológicos. A chamada “alta cúpula” petista, no entanto, vê a semente sem a mesma paixão da dupla, e a tendência de José Dirceu e Antonio Palocci é apoiar uma faxina racional do texto no Congresso Nacional.

Poucos temas são discutidos num clima de tanta paixão e irracionalidade quanto a transgenia. Compreende-se. Os transgênicos representam uma ruptura cultural sem precedentes na história da humanidade, e um desafio à crença segundo a qual o homem pode pagar caro se mexer naquilo que Deus fez. O acerto de contas viria em forma de uma vingança da natureza, como aconteceu no caso da vaca louca. Nesse episódio, esses animais herbívoros foram artificialmente alimentados com rações com carne e adoeceram, provocando uma invasão de carne contaminada nos açougues europeus. No caso dos transgênicos, as pessoas, mesmo sem ter idéia precisa do que significam essas mutações, adotam uma postura contra ou a favor, em geral sem grandes reflexões. De um lado concentram-se os que tendem a aprovar os avanços científicos e os benefícios que trazem para a humanidade e para os fabricantes dos novos produtos que saem dos laboratórios. De outro, estão os que reprovam, principalmente ambientalistas e, de maneira geral, militantes de partidos de esquerda. Não importa o que digam os cientistas independentes a favor dos transgênicos, essa ala já decidiu que eles são um malefício – e acabou.

A ciência já falhou inúmeras vezes. A própria produção de animais clonados tem resultado em espécimes com defeitos e filhotes que já nascem com traços de senilidade. Mas a pesquisa científica, ao criar e lançar produtos para consumo da população, cerca-se de um rigor jamais visto. Os testes com alimentos modificados se transformam em relatórios submetidos à apreciação dos acionistas dos laboratórios, de comissões governamentais de saúde e ONGs. Nos Estados Unidos, há três órgãos federais regulamentando a produção de safras e alimentos geneticamente modificados. Entre eles está o FDA, departamento que analisa os níveis de toxicidade e potencial alergênico dos grãos para só então autorizá-los a entrar no mercado. Segue-se para os transgênicos o mesmo processo de verificação usado na aprovação de remédios.

A oposição aos transgênicos não se limita, no entanto, a movimentos preocupados com a saúde das pessoas e o equilíbrio do meio ambiente. Ela é engrossada por opositores ideológicos, para os quais as grandes empresas multinacionais que produzem transgênicos passariam a ter controle, através do domínio dessa técnica, sobre a agricultura dos países pobres. A relação comercial cotidiana é apresentada como uma transação que reúne musculosas companhias fornecedoras de semente transgênica, todas estrangeiras, e fracotes agricultores de países em desenvolvimento, como o Brasil. No site do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, lê-se o seguinte: “A patente genética, dominada por poucas nações, é um método mirabolante de controlar a agricultura mundial, ditando quem pode ter lucros e quem deve ficar com os prejuízos, controlar a área plantada e em quais países. Uma ditadura genética sem retorno”. Esse trecho faz parte do texto “Um futuro mutante e desconhecido”, disponível no endereço www.mst.org.br. Diferentemente do que pode parecer aos críticos ideológicos das sementes genéticas, os agricultores há muito trabalham em parceria com grandes companhias estrangeiras. Por meio dessas parcerias, compram maquinários, implementos agrícolas e até aviões, no caso das fazendas maiores. Desde o fim da I Guerra, os produtores rurais de países como o Brasil se relacionam com grandes fabricantes de plantadeiras, tratores e colheitadeiras, setor igualmente dominado por empresas multinacionais. Outra parceria vital do campo com as multinacionais se dá na compra dos pesticidas, em que também operam companhias internacionais gigantescas.

José Pascoal/Jornal da Divisa/AE

EM BUSCA DAS MANCHETES

Acima, caminhões de soja detidos no Paraná, sob a acusação de transportar transgênicos. Abaixo, protesto de ambientalistas contra os alimentos modificados: muito barulho e poucas evidências

Dida Sampaio/AE

A chegada dos transgênicos, portanto, não muda paradigma algum nessa área. As multinacionais, que já dominavam o maquinário e a produção de defensivos agrícolas, também estão na linha de frente da pesquisa biotecnológica, da mesma forma que são pioneiras na indústria automobilística, farmacêutica, naval ou aeronáutica. Existem três grandes companhias explorando a produção comercial de sementes transgênicas. São três gigantes, uma européia, a Syngenta, e duas americanas, a DuPont e a Monsanto. Algumas dessas empresas atuam em vários ramos. A DuPont, por exemplo, surgiu há 200 anos comercializando pólvora negra e hoje vende abrasivos, inseticidas, fios, polímeros, o kevlar, usado na construção de aeronaves, e o teflon, que a dona-de-casa tanto conhece. Fatura 75 bilhões de reais por ano, emprega 79.000 pessoas e atua em setenta países. No Brasil, a empresa-símbolo da transgenia é a Monsanto. Ninguém fala das demais. O motivo é que a soja é o único produto transgênico comercializado no Brasil, e a Monsanto detém a patente da única variedade de soja modificada existente no mercado, a Roundup Ready, um marco por ter sido o primeiro transgênico cultivado em larga escala no mundo. Fundada nos Estados Unidos no começo do século passado, a Monsanto fatura 15 bilhões de reais por ano e investe 10% de seu faturamento em pesquisa científica.

Investir em biotecnologia tem-se revelado um bom negócio para as companhias. Um cálculo feito pela Universidade de Iowa, nos EUA, chegou à conclusão de que, em 1999, o plantio de soja transgênica resultou em um excedente de 2,7 bilhões de reais em toda a cadeia. A maior parte desse dinheiro, 55%, ficou com a Monsanto; os outros 45% foram distribuídos pelos milhares de fazendeiros que plantaram as sementes modificadas. Apesar das críticas do MST, nenhum produtor rural é obrigado por quem quer que seja a plantar transgênicos. Compra grão modificado quem quer. Quem não quer compra as sementes comuns. O atrativo é o aumento de lucratividade. Os estudos mostram que, em troca de royalties, as empresas oferecem aos fazendeiros lucro que pode ser até 25% maior do que aquele que obteriam se cultivassem a lavoura com sementes comuns. O motivo é que as lavouras transgênicas exigem menos agrotóxicos e são mais fáceis de tratar. A vantagem da transgenia, no caso da soja já comercializada com essa característica, é que ela é resistente à aplicação de um herbicida para exterminar as ervas daninhas. A plantação torna-se, assim, mais produtiva para o agricultor.

Os fabricantes de transgênicos gostam de apontar a chegada do grão modificado geneticamente como uma nova “revolução verde”, o salto na produção agrícola ocorrido na década de 1960 que livrou o planeta de uma tragédia provocada pela fome. Naquele tempo, dezenas de milhões de indianos, paquistaneses e chineses corriam sério risco de morrer de desnutrição e foram salvos por uma combinação de herbicidas, adubos e sementes selecionadas. Do ponto de vista científico, a transgenia impressiona, pois os cientistas encontraram uma forma de alterar a estrutura molecular das plantas e de enriquecê-las com genes de outras plantas ou até mesmo de bactérias em busca de um alimento com maior concentração de nutrientes ou mais resistente à ação das pragas. Pesquisadores indianos chegaram a um tipo de batata enriquecida com proteína. Nos Estados Unidos testam-se misturas de vegetais que podem, além de alimentar, combater doenças como hepatite B, cólera e diabetes. Como os produtos são desenvolvidos em laboratório, onde todos usam avental, é como se estivesse em curso uma “revolução branca”.

No aspecto da ciência, os transgênicos representam uma etapa mais sofisticada que a da revolução verde. Mas, no que diz respeito aos aspectos econômicos e sociais, há mais promessa que realização. Com a introdução dos defensivos agrícolas e adubos químicos no começo dos anos 60, a produção mundial de comida triplicou. Em alguns casos, bem mais do que isso. Em 1940, os EUA produziam 56 milhões de toneladas de milho em 32 milhões de hectares. Segundo registros de 1999, a área semeada havia sido reduzida à metade, mas a produção ficou oito vezes maior. No caso dos transgênicos, os ganhos econômicos não estão crescendo nessa escala gigantesca. Na Europa, o óleo produzido com soja transgênica está um pouco mais barato que o da versão não transgênica. Ainda assim, não é possível afirmar se o preço menor se deve aos ganhos de produtividade ligados à transgenia ou a uma política de preços favoráveis para tentar contornar uma eventual resistência do consumidor. O que ajuda a decidir a questão é o interesse manifestado por quem entende do assunto – os agricultores. Eles estão procurando febrilmente as sementes transgênicas para plantar, sinal de que têm com elas maior produtividade. Quando são apresentados ao fato de que ainda não revolucionaram o planeta, os fabricantes de transgênicos dizem que as sementes modificadas ainda são novas demais. Prometem que o grande impacto na produção virá com o tempo.

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